Rio Grande do Norte
05 maio

RN registra 3,1 mil casos de esporotricose em humanos e animais

RN registra 3,1 mil casos de esporotricose em humanos e animais

O Rio Grande do Norte enfrenta um avanço da esporotricose, uma micose causada pelo fungo Sporothrix e que atinge principalmente humanos e gatos. Entre 2016 e abril de 2025, o Estado notificou 734 casos suspeitos da forma humana e 2.700 da forma animal. A maioria dos registros está concentrada na Região Metropolitana de Natal, mas a doença já se espalhou por 29 municípios e afeta majoritariamente mulheres (67,8%). Apesar do crescimento, especialistas alertam para a subnotificação e para a necessidade urgente de políticas públicas voltadas à saúde animal, ambiental e humana.

A médica infectologista Andreia Ferreira Nery, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenadora de um projeto sobre o tema, explica que o aumento dos casos está ligado à ausência de uma abordagem integrada. “Existe uma dificuldade histórica do tratamento da esporotricose felina e estima-se que, provavelmente, para cada um caso humano tem entre quatro a cinco casos felinos, que é mais ou menos a estimativa que a gente tem no Estado”, afirma. Segundo ela, o problema se agrava nas regiões com falhas de saneamento, coleta de lixo precária e abandono de animais.

Os dados da Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap) mostram que 85,1% dos casos humanos ocorreram na 7ª Região de Saúde, que inclui Natal, Parnamirim e Extremoz. Em 2023 e 2024, o Estado viveu o pico da doença: 57% de todas as notificações ocorreram nesses dois anos. Em 2025, até 1º de abril, foram registrados 58 casos humanos suspeitos em nove municípios — entre eles, pela primeira vez, Mossoró e Currais Novos. Entre os animais, somente Natal concentrou 78,4% das ocorrências, seguido por Extremoz e Parnamirim.

A esporotricose se transmite principalmente por meio de arranhões, mordidas ou contato com secreções de gatos infectados, que também são as maiores vítimas da doença. “O grande protagonista da esporotricose não é o ser humano, é o gato. Enquanto a gente tiver uma relação de algo em torno de um humano para cada quatro ou cinco gatos doentes, a gente vai continuar tendo muita esporotricose felina. Sem o tratamento dos animais, o ciclo de transmissão não será interrompido”, afirma Andreia.

Além do impacto epidemiológico, a esporotricose tem um recorte social e de gênero evidente: quase 70% dos casos humanos atingem mulheres. “A maioria dos casos acomete mulheres porque, historicamente, são mulheres que cuidam. Mulheres cuidam de pessoas, mulheres cuidam de bicho, mulheres cuidam da casa. Essas mulheres, quando adoecem, a vida de toda a família adoece também”, relata a médica. Ela explica que, além das feridas físicas, há sequelas emocionais e sociais, como dor crônica, cicatrizes visíveis e afastamento das atividades familiares e laborais.

O projeto liderado pela UFRN para enfrentamento da esporotricose foi aprovado por edital nacional do CNPq e reúne diversas instituições. Com duração de dois anos e investimento de R$ 494 mil, a iniciativa vai atuar em todos os territórios de saúde do Estado, promovendo capacitação de pelo menos 800 profissionais das áreas humana, animal e ambiental. “Esse projeto traz duas questões bastante inovadoras, que é o recorte de gênero e a relevância da saúde ambiental no enfrentamento à esporotricose”, afirma Andreia.

Entre as ações previstas estão a formação de profissionais da atenção primária, apoio clínico, elaboração de materiais educativos e visitas a territórios com maior número de casos. A abordagem segue o conceito de Saúde Única, que reconhece a interdependência entre humanos, animais e o meio ambiente. “A esporotricose é uma doença ligada a situações de urbanização sem um projeto adequado de urbanismo. E ela acontece, principalmente, nos lugares onde tem dificuldade com cumprimento de políticas públicas, como limpeza urbana, coleta de lixo, controle de desastres”, afirma a infectologista.

SUS oferece tratamento

O tratamento da esporotricose está disponível no SUS. A droga mais utilizada é o itraconazol, oferecido nas Unidades Básicas de Saúde. Casos graves, que exigem hospitalização e uso de anfotericina B, são encaminhados ao Hospital Giselda Trigueira, referência em doenças infecciosas no RN. “Existe um protocolo clínico de atendimento, sim, da esporotricose, mas é uma doença que pode ser atendida na unidade básica de saúde. A gente está começando já um programa de treinamento e isso tudo vai ser articulado via a Secretaria Estadual com as secretarias municipais de saúde”, explica Andreia.

Nos gatos, o tratamento também é feito com itraconazol, mas exige mais tempo e cuidado. Animais com suspeita de esporotricose devem ser isolados do convívio com humanos e outros bichos. Em caso de morte, os corpos não devem ser enterrados, mas incinerados — prática que ainda é rara no Estado e favorece a manutenção do ciclo da doença. “As pessoas, por não ter onde descartar o corpo do animal que morreu, muitas vezes enterram, e isso mantém a transmissão”, alerta.

Desde 2022, o sistema NotificaRN, da Sesap, permite o registro da doença por tutores, veterinários e clínicas privadas. Até abril deste ano, 122 notificações foram feitas no sistema, a maioria em Natal. A ferramenta complementa os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e amplia a vigilância. “A saúde animal é muito pouco discutida no âmbito das políticas públicas, e é importante saber que, na verdade, a gente vai continuar sem enxergar a doença. Então ela fica como se fosse uma doença que a gente só tem ali, a parte de cima do iceberg sendo vista, mas, na verdade, ela é gigante embaixo disso”, compara Andreia.

A esporotricose está agora incluída na lista nacional de doenças de notificação compulsória, mas o Rio Grande do Norte já adotava essa prática desde 2017, inclusive para os casos felinos — o que ainda não é exigido em nível federal. “Nesse momento, nós fomos pioneiros em tratar a esporotricose como um problema de saúde pública, não apenas na saúde humana, mas na saúde ambiental”, reforça a médica. Ela lembra que o grupo de trabalho estadual sobre a doença atua desde 2016, com ações já realizadas em diversos municípios.

A médica, Andreia Ferreira Nery, coordena projeto na UFRN | Foto: Adriano Abreu

Projeto busca conter doença no RN

Com foco na interdependência entre saúde humana, animal e ambiental, a UFRN deu início a um projeto inovador para enfrentar o avanço da esporotricose no estado. A iniciativa integra ações educativas, clínicas e de vigilância em territórios prioritários e é coordenada pela médica infectologista Andreia Ferreira Nery, professora do Departamento de Infectologia da instituição.

A proposta foi uma das selecionadas na chamada nacional nº 34/2024 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e prevê a atuação direta nas oito regiões de saúde do estado. O plano é capacitar pelo menos 800 profissionais, incluindo médicos, enfermeiros, veterinários, agentes comunitários, cuidadores de animais e lideranças comunitárias. A capacitação será feita com aulas presenciais, videoaulas, cartilhas, podcasts e visitas in loco aos territórios com maior número de notificações.

A UFRN lidera um consórcio institucional com diversos parceiros públicos e privados, entre eles a Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap), a Secretaria Municipal de Saúde de Natal, o Instituto Santos Dumont (ISD), a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ONGs como a Patamada e clínicas veterinárias. A Superintendência de Comunicação da UFRN (Comunica) também atua na difusão de conteúdos educativos em linguagem acessível e canais digitais.

“Esse projeto também precisa ser contemplado. Também é um projeto da universidade que trabalha com setores públicos, que trabalha com setores de organizações não governamentais e privadas e que se propõe a discutir as políticas públicas para melhoramento do enfrentamento para todos e todas”, afirma Andreia. O grupo coordenado por ela participa do recém-criado GEASU-RN (Grupo de Estudo e Ações em Saúde Única do RN), que reúne docentes, pesquisadores, profissionais do SUS e especialistas em ecologia e comunicação.

Além da capacitação técnica, o projeto aposta no matriciamento como metodologia de formação contínua e apoio clínico às equipes locais. A ideia é atuar em rede com as Unidades Básicas de Saúde, oferecendo consultoria especializada para o manejo de casos leves e moderação de fluxos de encaminhamento de casos graves. “A nossa ideia é fazer visitas in loco e também receber pessoas para serem treinadas a partir do nosso ambulatório de referência”, diz a infectologista.

Foto: Adriano Abreu

Tribuna Do Norte

PAX

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